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60 anos de morte de Getúlio Vargas

João Pinheiro + fontes
“Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. Assim encerrou sua carta-testamento o ex-presidente Getúlio Vargas, governante que encerrou a “ditadura” do café com leite e levou o país para o desenvolvimento [a partir de outra ditadura]. Veja só!


A frase, uma das mais célebres passagens da história política brasileira, encerra a carta-testamento deixada por Getúlio Vargas. Há 60 anos, no dia 24 de agosto de 1954, o então presidente tirou a própria vida em meio à pior crise enfrentada em seus anos de atuação política.

No controverso mundo da política, ninguém é tão bom, nem tão mau a ponto de ser unanimidade. Vargas, não é uma exceção. O pai dos pobres, do salário mínimo, das férias remuneradas, da carteira de trabalho, fechou o Congresso, censurou a imprensa, extinguiu partidos.

Foi estadista e ditador. O legado getulista, ao mesmo tempo em que parece empoeirado, se renova mais uma vez. Está ali, na TV de plasma, a propaganda eleitoral que não deixa negar.

Para a professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas, Dulce Pandolfi, uma das heranças do Estado Novo [1937-1945] é essa concepção da política do culto à personalidade, “em cima das pessoas, e não dos partidos”.

Ela acredita que essa prática é extremamente negativa, porque enfraquece as instituições e leva o eleitor a votar pelo nome, e não pela organização.“Sou a favor do fortalecimento das instituições. Os partidos para a democracia são fundamentais. É preciso despersonalizar a política, votar em projetos [não em nomes de pessoas], explica.

Se hoje o marketing político é o trunfo do mercado eleitoral para a estratégia do convencimento público, na década de 30, Getúlio dava os primeiros passos para que isso se tornasse uma prática. A imagem do homem que impulsionou o desenvolvimento no país, criou a CSN, a Vale do Rio Doce, a Petrobras, rompeu o tempo contornada pelo simbolismo paternal, sem que isso fosse assim tão espontâneo.

O ex-presidente tinha a seu favor um leque de medidas tomadas para beneficiar os trabalhadores, que o tornou, inquestionavelmente, um ídolo para as massas. “Vargas, efetivamente, conseguiu construir uma imagem pública. Não foi à toa que venceu uma eleição legitimamente. As imagens do enterro dele são de uma comoção que ainda não se teve igual na história do país”, afirmou o professor de História Contemporânea da PUC-RIO, Maurício Parada.

Morte de Getúlio


Uma reunião com os ministros no Palácio do Catete varou a madrugada e decidiu que Getúlio se afastaria do governo por três meses para dar lugar ao vice, Café Filho.

Após o fim da discussão, já com o dia claro, o político se recolheu ao seu aposento. Por volta das 8h35, o barulho de um tiro ecoou pelo palácio. Seu filho Lutero correu para o quarto, seguido pela esposa de Vargas, Darcy, e a filha Alzira.

“Getúlio estava deitado, com meio corpo para fora da cama. No pijama listrado, em um buraco chamuscado de pólvora um pouco abaixo e à direita do monograma GV, bem à altura do coração, borbulhava uma mancha vermelha de sangue. O revólver Colt calibre 32, com cabo de madrepérola, estava caído próximo à sua mão direita”. É assim que o biógrafo Lira Neto descreve o cenário da morte de Vargas no terceiro volume da série Getúlio.

A carta-testamento de Getúlio Vargas, que seria lida durante aquele dia pelas rádios em todo o território nacional [e está presente no fim do post], foi encontrada em um envelope, encostada ao abajur da mesinha da cabeceira da cama do então presidente.

Nos apontamentos do biógrafo, o texto, originalmente esboçado por Getúlio, teve sua versão final passada na máquina de escrever pelas mãos de um amigo, José Soares Maciel Filho, já que o ex-presidente não sabia datilografar.

O rascunho da carta havia sido encontrado no dia 13 de agosto pelo major-aviador Hernani Fittipaldi, um dos ajudantes de ordem de Getúlio, enquanto arrumava a mesa do presidente.

Assustado com o conteúdo do manuscrito, ele entregou o papel à Alzira, que questionou o pai. “Não é o que estás pensando, minha filha. Não te preocupes, foi um desabafo”, se esquivou Vargas. Essa porém não foi a primeira vez que Getúlio fez menção ao suicídio. Em suas anotações pessoais, ele já havia cogitado tirar a vida em outros momentos de sua jornada política.

A primeira delas foi quando chegou ao poder, em 1930. Naquela data, enquanto se encaminhava para a sede do governo, se disse disposto a não retornar com vida ao Rio Grande do Sul caso não obtivesse sucesso na empreitada.

Era a primeira anotação pessoal que fazia no diário que carregou para o resto da vida. Lira Neto considera que a diferença em 1954 é que Getúlio se viu encurralado e não conseguiu contornar a crise, como das outras vezes.

Breve histórico


Depois de chegar ao poder na liderança do movimento que ficou conhecido como Revolução de 1930, o político gaúcho Getúlio Dornelles Vargas exerceu o governo no país de forma ininterrupta até 1945. De 1930 a 1934 ele foi chefe do governo provisório. Em 1934 foi eleito presidente da República pela Assembleia Nacional Constituinte e exerceu o Governo Constitucional até 1937, quando, por meio de um golpe, instaurou a ditadura do Estado Novo, que durou até 1945.

Retirado do comando do País por um golpe militar, se recolheu à cidade natal, São Borja (RS), de onde articulou a volta ao poder pela via democrática nas eleições presidenciais de 1950, cujo mandato não conseguiu completar.

Carta-Testemunha de Getúlio Vargas


TEXTO MANUSCRITO

“Deixo à sanha dos meus inimigos, o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia. A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.

Acrescente-se a fraqueza de amigos que não defenderam nas posições que ocupavam à felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês, à insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país contra a minha pessoa.

Se a simples renúncia ao posto a que fui levado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria.

Mas tal renúncia daria apenas ensejo para, com mais fúria, perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não dos crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes.
Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus. Agradeço aos que de perto ou de longe me trouxeram o conforto de sua amizade. A resposta do povo virá mais tarde...

TEXTO DATILOGRAFADO

“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.
Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação.
Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.
Getúlio Vargas


Fonte: R7; O Dia; História Viva
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